quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Tábua de Flandres - Arturo Pérez-Reverte - Resenha

Por Eric Silva

“Porque o jogo do xadrez é, com efeito, um sucedâneo da guerra; mas é também mais qualquer coisa... Parricídio. (...) Trata-se de dar cheque ao rei, compreendem?... Matar o pai. Eu diria mesmo que, muito mais do que com a arte da guerra, o xadrez tem muito a ver com a arte do assassínio”.
(A Tábua de Flandres - Arturo Pérez-Reverte)

O xadrez não é só um dos jogos mais antigos do mundo como é também uma das mais complexas representações de um campo de guerra, onde dois poderosos exércitos se enfrentam. O objetivo é furar as linhas de defesa e matar o rei inimigo, mas apenas a melhor estratégia conduzirá o exército à vitória. Pensando desse modo, o xadrez é também uma representação da realidade das numerosas batalhas travadas na antiguidade e também na era moderna. Mas e quando o campo de batalha é novamente transposto para a realidade e você é a peça de uma partida mortal, movido pelas mão invisíveis de um adversário que age pelas sombras? Arte, xadrez e morte, em A Tábua de Flandres, o autor espanhol Arturo Pérez-Reverte compõe uma intrincada trama que transcende os séculos, envolta em mistérios e que inicia uma macabra partida onde o preço da derrota pode ser a morte.

Sinopse

Julia é uma jovem restauradora de obras de arte e seu último trabalho é o restauro de uma valiosa pintura do século XV e que está prevista de ir a leilão. A obra, pintada sobre uma tábua de carvalho pelo artista flamenco Pieter Van Huys, representa uma partida de xadrez entre dois importantes cavalheiros da corte ostenburguesa, tendo ao fundo uma dama vestida em negro que lê um livro posado sobre o colo. Mas o que até então seria uma mera representação – bastante realista – de uma cena doméstica, se revelaria a guardiã de um mistério centenário quando a jovem descobre oculta sob a pintura uma inquietante inscrição: Quis Negavit Equitem (Quem matou o cavaleiro?).

Pintura que ilustra a capa do livro na edição da Editora Alfaguara .

Após uma investigação histórica acerca dos personagens retratados na tela – fidalgos do ducado de Ostenburgo –, Julia descobre um suposto envolvimento dos três em um intrincado jogo político que envolvia os interesses das cortes francesa e borgonhesa pelo ducado e também um possível triangulo amoroso que teria acabado em tragédia, quando um deles, Roger de Arras, fora brutalmente assassinado, o que mudaria o curso da história da Europa. Tudo indicava que a pintura, ou mais precisamente a partida nela representada, era a chave para a resolução do crime.

Decidida a desvendar o enigma deixado pelo artista flamenco, Julia, com ajuda de seu amigo e confidente, César, e de um excêntrico e enigmático xadrezista, vê sua vida mudar radicalmente. E o que antes parecia se tratar apenas da investigação de um assassinato ocorrido cinco séculos antes, se torna um jogo mortal nas mãos de um misterioso e inteligente jogador que age nas sombras. É aí, sob as leis regias do enxadrismo e
entremeado a todos os ocorridos, que irá emergir uma trama de jogos de interesses que tem como plano de fundo o competitivo e muitas vezes obscuro mundo das artes.

Resenha

O Rei Preto.
Imagem: Wikimedia Commons 
Posso me considerar um xadrezista amador, de pouco talento, mas apaixonado por uma boa partida. O xadrez é um jogo que me intriga, que me desafia, um verdadeiro exercício – como muito poucos – para a inteligência e a estratégia. Não é à toa que fora jogado por alguns dos mais excepcionais estrategistas, a exemplo de Napoleão. Mas uma coisa eu tenho que concordar com o enxadrista Muñoz de A Tábua de Flandres, o xadrez é um jogo de morte, de assassínio, em que todas as peças são movidas com dois propósitos básicos: proteger o rei do ataque inimigo e matar o regente adversário. É uma dualidade, ou melhor uma antítese, em que se protege e também se ataca. Acho que pensando nisso que o espanhol Arturo Pérez-Reverte idealizou e compões a narrativa deste livro, porque estas ideias estão bem presentes na sua trama.

Para quem não gosta ou não sabe jogar xadrez A Tábua de Flandres pode ser, em longas passagens, um enredo desestimulante com todas as suas jogadas, regras e teorias de xadrez que vão pouco a pouco reconstituindo a partida retratada na pintura de Van Huys.

Eu mesmo tive dificuldades de imaginar as partidas e lances, principalmente porque em alguns momentos se é usado na trama o sistema de transcrição de partida, conhecida como notação algébrica ou notação francesa, em que os lances das partidas são descritos mediante um conjunto de letras, números e símbolos matemáticos. Não que o sistema seja complicado de compreender quando se dedica a estudá-lo e gravar suas regras e simbologias, mas para quem não o tenha feito é impossível compreendê-lo como um todo apenas pelo uso da lógica. Além disso, as partidas descritas verbalmente pelos jogadores são mais compreensíveis quando se tem a mão um tabuleiro, principalmente quando Muñoz faz a reconstituição reversa da partida retratada na pintura para saber quais foram os lances anteriores.

Por isso digo que em muitas passagens o livro pode ser bastante monótono. Porém, o autor soube explorar terrivelmente bem o campo da dúvida, nos expondo questões aparentemente insolúveis quando entra em cena um novo assassino que passa a jogar, das sombras, com as vidas de Julia e de seus aliados. Um novo jogador cujos crimes, de alguma forma, estavam ligados ao quadro. Quem seria esta pessoa? Qual a sua relação com o quadro e com o enigma que Julia tentava decifrar? Quais os seus objetivos? Que trama obscura se desenvolvia pelos bastidores de tudo aquilo?

Por muito tempo Arturo consegue deixar estas questões em aberto mantendo no ar o suspense de um segundo enigma, que para o leitor é bastante difícil de sugerir uma resolução, quer seja para a identidade do assassino que entra no jogo, mas principalmente, para os seus objetivos. Foram estas dúvidas, este novo enigma proposto pela narrativa, que me fizeram levar o livro até a última página, e o desfecho, para mim, foi inesperado e surpreendente.

Contudo a resenha não se encerra aqui, há outro ponto digno de nota. Arturo conseguiu em sua trama desenvolver personagens extremamente complexos e difíceis de analisar e descrever, a exemplo de César, um antiquário quinquagenário, homossexual e de costumes que misturavam o seu gosto e admiração pelos povos e clássicos (gregos e romanos) com a modernidade de sua época. Também Muñoz, um jogador de xadrez mal-ajambrado, um tanto autista, que não via no mundo nada que lhe interessasse além do xadrez, ou que não pudesse ser explicado pelo jogo e por padrões matemáticos. Temo que a mais simples das personagens seja a própria Julia, um misto de mulher e menina, um tanto impressionável, mas também ambiciosa.
O Tabuleiro.
Imagem: Wikimedia Commons.

O livro foi adaptado para o cinema em 1994, em filme dirigido por Jim McBride. Contudo não consegui a película para compara-lo ao livro. Uma pena.

Para concluir, afirmo que gostei do livro, mas mais dos capítulos que se encaminhavam para o desfecho. Se não gostasse de xadrez não teria suportado os diálogos e explicações dos capítulos iniciais e de desenvolvimento e abandonaria o livro sem chegar ao mais intrigante da narrativa. Foram as dúvidas implantadas pelo autor ao longo da história que me deram motivação de ir até o fim e não me arrependi, porque não fui capaz de deduzir o assassino e suas intensões até que o livro me revelasse tudo. Contudo, por outro lado fiquei triste porque o livro não explora os seus cenários, e apesar de se passar na cidade de Madri não nos permitiu, como em A Sombra do Vento, viver a cidade junto com os seus personagens. O farei de outras formas.

A edição lida é portuguesa – mas mais fácil de ler do que a versão portuguesa de A Sombra do Vento –, de 2009, realizada pela editora ASA. Digital. A versão impressa contém 336 páginas.

Obrigado pela atenção.


15 comentários:

  1. Terminei ontem a leitura deste livro. De facto, às tantas torna-se um bocado aborrecido, se bem que gostei do suspense à volta do assassino. Já li outros títulos do mesmo autor e este foi o que achei mais "fraco" (talvez por ser um dos primeiros livros dele)

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    1. Até então foi o único livro dele que li, então ainda não tenho referências para falar, ainda assim me parece um bom escritor. Obrigado pelo comentário.

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  2. Boa noite ,eu queria uma informação, no início está umas Frases retirada do livro certo (“Porque o jogo do xadrez é, com efeito, um sucedâneo da guerra; mas é também mais qualquer coisa... Parricídio. (...) Trata-se de dar cheque ao rei, compreendem?... Matar o pai. Eu diria mesmo que, muito mais do que com a arte da guerra, o xadrez tem muito a ver com a arte do assassínio”.).Até pode ser uma pergunta estupida ,mas queria saber se foi retirada do livro A Tabua de Flandres e também gostaria de saber de que página foi retirada.
    Obrigado

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    1. Olá, foi sim uma passagem retirada do livro, mas infelizmente usei uma versão digital, logo não possui paginação.

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    2. Na versão que tenho deste livro a passagem está na página 180! Espero ter ajudado

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  3. ola será que poderia caracterizar a personagem Júlia, César e Muñoz?Obgrigada

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    1. Júlia, faz um bom tempo que li o livro (três anos quase) e são muitos livros que leio todos os anos. O que me recordo é apenas sobre César que é o personagem mais marcante da narrativa por ser muito excêntrico e até certo ponto bastante paternal com Júlia. Ele tem muita eloquência no seu modo de falar e tem um caráter calmo, mas uma personalidade afiada. Diria eu que ele é uma raposa, mas não me recordo muito. Desculpe não poder ajudá-la.

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  4. Boa tarde desculpe a pergunta mas sera que me pode descrever melhor o final ou melhor quem é o assassino ? Onrigado pela disponibilidade

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    1. Desculpe-me o mais de um ano (quase dois) sem reposta, mas não posso divulgar o desfecho. Esse post tem grande visibilidade e isso não agradaria os leitores em geral.

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  5. Bom dia, eu gostava de saber a vossa opinião sobre se o quadro da história de Van Huys da Partida de Xadrez existe mesmo ou foi ficcionado para o efeito. Obrigada

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    1. Quando escrevi esta resenha há quase cinco anos atrás, minhas pesquisas me conduziram a imagem presente no post. Hoje, pesquisando novamente, vejo que não necessariamente esta é a pintura (inclusive corrigi a legenda da imagem na postagem). Toda vez que a imagem aparece no Google está ligada diretamente ao livro e ela foi usada como capa de uma de suas edições pela Alfaguara, mas isso não afirma que seja uma obra do referido autor. Então não posso lhe dar certeza alguma acerca disto.

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