quarta-feira, 2 de maio de 2018

[Especial Zafón] O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz Zafón – Resenha


Por Eric Silva

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Mistério, loucura, tortura, vingança, sacrifício e impunidade. Chegando ao terceiro volume da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos o nosso especial sobre Carlos Ruiz Zafón vem falar de O Prisioneiro do Céu o menor dos livros da coleção, mas para onde convergem as tramas de A Sombra do Vento e de O Jogo do Anjo. Nesse livro instigante conhecemos mais ao fundo o passado de Fermín Romero de Torres principal escudeiro de Daniel Sempere e como as tramas do destino os ligaram muito antes de se conhecerem. Um livro no qual literatura e história se unem mais uma vez para falar de uma Barcelona cheia de segredos e perigos.

Sinopse do enredo

É dezembro de 1957 e dois anos se passaram após os fatos narrados em A Sombra do Vento. Daniel Sempere prossegue sua vida agora casado com Beatriz e pai do pequeno Julián. Os negócios da livraria vão mal, mas além das vendas escassas outros problemas vem tirando o sono de Daniel: o comportamento estranho de Fermín as vésperas de seu casamento com Bernarda e, mais tarde, também o segredo que Beatriz escondia e que poderia abalar sua relação.

Contudo, o cenário pouco animador se torna ainda pior quando um estranho com a mão de porcelana visita a loja e compra um exemplar raro de O Conde de Monte Cristo, o item mais caro da livraria, e deixa nele uma dedicatória inquietante endereçada a Fermín: “Para Fermín Romero de Torres, que retornou de entre os mortos e tem a chave do futuro”. Irrequieto com aquele mistério Daniel resolve investigar quem seria o homem misterioso, e descobre não só onde esteva hospedado com o mais inquietante: este usava um nome falso, o do próprio Fermín.

Sentindo que algo estava muito errado, o rapaz resolve pressionar o amigo e falar da visita do enigmático homem expondo os fatos que descobrira. Após muita insistência e também se abrir com Fermín sobre as dúvidas que o persegue em relação a Beatriz, Daniel consegue que o amigo também se abra e explique sua conexão com o homem da mão de porcelana. Nesse momento, somos transportados para o passado de Fermín Romero de Torres, para a época quando ele foi capturado pelo regime franquista que ascendia após a Guerra Civil Espanhola, torturado e preso no Castelo de Montjuic, local onde seu destino começa a convergir em direção aos dos Sempere.

Resenha

O Prisioneiro do Céu possui uma trama que é bem mais próxima do estilo de A Sombra do Vento do que da atmosfera gótica e sobrenatural de O Jogo do Anjo, porém bem menos romantizado do que o primeiro e substancialmente menos sombrio e dúbio se comparado ao segundo. É um livro de memórias e confluências e a preparação para o livro seguinte e derradeiro: O Labirinto dos Espíritos. Aqui parte dos personagens de A Sombra do Vento se encontram com os d’O Jogo do Anjo, novos personagens são incluídos e a ligação entre Fermín e os Sempere é finalmente esclarecida.

O livro é dividido em três partes. Na primeira, Um Conto de Natal, voltamos a Barcelona para saber como vivia Daniel e sua família após o casamento com Bea e o nascimento de seu filhinho Julián. Nessa parte também temos o surgimento da estranha figura que procurava por Fermín e acaba comprando o livro mais caro da loja apenas para transmitir uma mensagem. A segunda e a terceira parte do livro, De entre os Mortos e Nascer de Novo, são inteiramente dedicadas ao passado de Fermín e sua passagem pela prisão de Montjuic. Por fim, com O Nome do Herói, Zafón encerra sua narrativa.

Assim como os demais esse é um livro magnético que prende o seu leitor em uma leitura voraz e muito rápida. O texto transcorre com uma fluidez incrível que me fez lê-lo completamente do sábado para o domingo mesmo com as dores impostas por uma virose horrível.

No que se refere aos personagens, O prisioneiro do Céu conserva parte bem pequena do núcleo principal de A Sombra do Vento formado pelos Sempere, Bea, Fermín e Isaac, e resgata de O Jogo do Anjo o seu protagonista, David Martin, e a jovem mãe de Daniel, Isabella.

Ao elenco modesto – se comparado com os livros anteriores – é acrescido apenas alguns novos personagens dignos de nota. Pablo, ex-noivo de Bea que volta a atormentar o juízo de um Daniel enciumado; Fernando Brians, um advogado de pequena projeção social, e Rociíto, uma jovem prostituta, que ajudam Fermín quando esse foge da prisão. Mas os dois mais importantes a adentrarem a narrativa são Maurício Valls, diretor da prisão de Montjuic e entorno do qual gira boa parte da trama como principal antagonista do livro, e Sebastián Salgado um dos presos de Montjuic e que também possui um papel de grande relevo na trama. Infelizmente revelar mais alguma coisa estragaria a surpresa do livro.

História e literatura como fio condutor: Montjuic e O Conde de Monte Cristo

Castelo de Montjuic. Wikimedia Commons.
Como em todos os livros da série, a literatura somada a história de Barcelona na primeira metade do século XX são os principais fios condutores da trama e para cada personagem a literatura é também sua inspiração, seu meio de vida, sua salvação ou sua desgraça.

Habitado por autores malditos que se tornam os próprios personagens de suas histórias, o insondável e nebuloso mundo dos livros é novamente explorado atestando que O Cemitério dos Livros Esquecidos foi pensado como um verdadeiro labirinto de livros dentro de livros, histórias dentro de histórias, que não só busca tornar misterioso e fascinante o universo da literatura como explora com muita inteligência a história trágica da própria Espanha.

Interior do Castelo. Wikimedia Commons.
Mas dessa vez Zafón também buscou na literatura universal inspiração para escrever sua obra. O Conde de Monte Cristo, livro de Alexandre Dumas, é citado diversas vezes ao longo da trama e cumpre no enredo um papel crucial e central, se misturando à própria narrativa e fazendo da prisão barcelonesa de Montjuic (Castillo de Montjuic) a reencarnação do próprio Château d'If (Castelo de If).

É tomando como ponto de partida a compra do volume raro do famoso livro do romancista francês que Zafón conta a passagem do mais icônico personagem de A Sombra do Vento pelo tenebroso castelo barcelonês, que nos finais da Guerra Civil Espanhola se tornou a principal prisão e campo de execução dos franquistas na cidade catalã. Desta forma Montjuic se torna o principal cenário da trama, a literatura o seu principal tema e o fim da guerra civil, o contexto histórico do livro.

Magnetismo

Como em todos os seus livros Zafón escreve uma trama instigante e que prende a atenção dos leitores para cada detalhe.

Em minha experiência com o livro, a minha atenção era prendida principalmente com qualquer coisa que dissesse respeito a David Martin, protagonista de O Jogo do Anjo. Para mim a narrativa do segundo livro da série é a mais atípica e estranha da coleção e, por isso, qualquer pequena informação sobre David em O Prisioneiro do Céu poderia se tornar em uma pista para compreender os pontos nebulosos da narrativa anterior. De fato, muitas passagens do terceiro livro ajudam a compreender o estranhamento que a narrativa de David produz no leitor e porquê ela se distancia substancialmente do estilo empregado em A Sombra do Vento. Além disso, ficamos sabendo em que circunstâncias O Jogo do Anjo foi escrito por David.

Zafón em fato durante o período de publicação do livro na Espanha (2011).
Outra coisa que me chamou a atenção foi a escolha de narradores. Apesar de grande parte da narrativa ser um relato de sua história contada por Fermín para Daniel, Zafón optou por manter Daniel como narrador principal da narrativa e elegeu um narrador onisciente para contar a história que na verdade seria narrada por Fermín.

Não é a primeira vez que Zafón utiliza-se de mais de um narrador para contar passagens diferentes de sua história. Em A Sombra do Vento todo o mistério por trás da história de Julian é narrado por Nuria através de uma carta deixada pra Daniel, tornando a personagem em uma segunda narradora do livro.

Em O Prisioneiro do Céu, Zafón utiliza-se de recurso semelhante, mas opta por não usar Fermín como narrador para permitir que a narração fosse além dos muros da fortaleza, onde ele se encontrava preso, e alcançasse igualmente outros personagens. O restante da trama é narrado por Daniel. Uma jogada inteligente e estrategicamente escolhida que permitiu, de um lado, que em parte do livro revivêssemos a sensação de ter Daniel novamente como narrador de sua história e, do outro, permitiu ao autor desenvolver a narrativa da forma como queria. Assim foi possível a Zafón fornecer os detalhes e desenlaces necessários para compor o enredo que prepara o terreno para o livro seguinte.

Outro ponto está relacionado a escrita do texto. Zafón mantém uma escrita impecável, mas achei bem menos poética, mais crua e prática do que nos livros anteriores. É certo que o lirismo de que se vale para escrever seus livros é bem dosado e aprece em momentos bem estratégicos, sobretudo nos quais ele descreve os cenários e a atmosfera geral da cidade de Barcelona. Mas achei que nesse livro ele buscou se preocupar bem menos com a estética e concentrou-se mais na história. A verdade é que notei muito pouco a presença das construções estéticas que sempre elogio na obra do autor (leia a resenha de releitura de A Sombra do Vento).

Desfecho: entrecruzando caminhos numa edição lindíssima

Apostando em uma trama rápida que revela e omite ao mesmo tempo, o desfecho do livro é muito interessante e deixa muitas coisas pelo caminho: perguntas não respondidas, mistérios não explicados e um desejo visível de vingança. Esses elementos nos fazem ter uma ideia de que o livro que se segue e com o qual, enfim, Zafón encerra a trama do Cemitério dos Livros Esquecidos, deverá ter muitos desdobramentos e uma história arrebatadora. Essa é a minha expectativa. Pelo tamanho do tomo – que conta com 679 páginas – há muita história a ser contada em O Labirinto dos Espíritos e se a qualidade da série foi mantida até o fim, esse, sem dúvida, será um final inesquecível.

Por fim, gostaria só de fazer um rápido comentário sobre a edição. Não costumo falar muito disso nos livros que leio, porque em sua maioria são livros digitais, mas não podia deixar de mencionar como a nova edição de O prisioneiro do Céu é linda. A ilustração da capa tem uma resolução perfeita apesar da provável idade da fotografia. Além disso, a atmosfera misteriosa de uma manhã nublada e úmida pelas ramblas[1] de Barcelona combina perfeitamente com a atmosfera que Zafón dá às suas histórias. A capa é ao mesmo tempo bonita, elegante e combina com sua narrativa. Digo seguramente que é o livro mais bonito da minha biblioteca.

A edição lida é da Editora Suma de Letras, do ano de 2017 e possui 270 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Preview do Google Books

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