quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Aventuras do Vampiro de Palmares – Gerson Lodi-Ribeiro – Resenha

Por Eric Silva

Um vampiro como nenhum outro que você tenha visto na literatura e séculos de história alternativa compõem o universo da terceira obra resenhada na campanha do #AnoDoBrasil. Livro do carioca Gerson Lodi-Ribeiro, Aventuras do Vampiro de Palmares, narra as desventuras e peripécias de Dentes Compridos, a última criatura remanescente de um povo milenar e indiferente à passagem dos séculos e que desde os tempos mais remotos sobreviveram da vitalidade do sangue humano até conhecerem o furor de suas presas. Um livro riquíssimo que reescreve a história da humanidade e do Quilombo dos Palmares, aliando ciência, misticismo, fantasia e fatos para compor uma trama que atravessa os tempos e desafia o seu leitor com a grande questão que nem mesmo a ciência foi capaz de responder: somos as únicas criaturas inteligentes a habitar o universo?

Sinopse

Do Peru pré-colombiano à Inglaterra Vitoriana, Aventuras do Vampiro de Palmares narra o trajeto dos filhos-da-noite, entidades naturais predadoras da raça humana que, ao longo dos séculos, foram sendo envoltos por uma áurea mítica de crendices e mitos que deram origem a lenda dos vampiros. Dentes Compridos é o único a escapar do massacre de seu povo milenar e sozinho corre o continente americano em busca de salvaguardar sua vida. Mas depois de muitas décadas de fuga em que esteve vivendo entre os índios brasileiros, o último filho-da-noite chega a nascente nação negra dos Palmares onde é capturado, feito cativo e depois, improvável aliado, um misto de agente secreto e assassino que age nas sombras na luta pela liberdade e pujança daquela que pretendia ser a primeira república das Américas e que se tornaria sua nação em definitivo.


Resenha

Desde John Polidori[1], James Malcolm Rymer[2] e Bram Stoker[3] que a literatura mundial está repleta de histórias de vampiros, dos mais variados tipos que vão dos sugadores mortos-vivos mais clássicos aos que brilham na luz do sol (rsrsrsrs). Mas piadas “crepusculares” à parte, na literatura brasileira também encontramos as nossas próprias histórias sobre o mito dos vampiros, algumas inspiradas nos modelos mais clássicos e outras extrapolando o próprio mito buscando outras raízes mais profundas. Mas a novidade trazida com Aventuras do Vampiro de Palmares, terceiro livro na campanha do #AnoDoBrasil, é o vampirismo científico, ou seja, vampiros encarados como criaturas naturais de uma espécie a parte, predadora da espécie humana e sanguissedenta (hematófaga), que em circunstância da força do tempo e das crendices passadas de geração em geração foram revestidas por uma representação fantasiosa, mesmo que com um fundo de verdade. Uma variação para mim completamente nova.

Meu primeiro contato com histórias nacionais sobre vampiros foi com O Andarilho das Sombras, primeiro livro da série Tempos de Sangue de autoria de Eduardo Kasse. Nesse livro, o autor cria Harold, um vampiro cuja origem remontam a mitos nórdicos que na Europa Medieval (cenário da trama) já caiam em decadência e desapareciam frente a hegemonia e imposição do catolicismo. Na trama idealizada por Kasse, o personagem principal conserva quase todos os aspectos tradicionais do vampirismo clássico. Além disso é marcante o peso dos contextos históricos de época sobre a trama, com destaque para a história religiosa-cultural medieval.

Depois de Kasse ainda não tinha lido outra obra nacional sobre vampiros. Aventuras do Vampiro de Palmares seria o meu segundo contato com o gênero em uma produção nacional, porém aqui, como já mencionei, a perspectiva de vampiro é bastante diferente, e mesmo tendo a História também um peso marcante para esta narrativa, ela se dá em épocas e espaços distintos em relação a obra de Kasse.
Em seu livro, Lodi-Ribeiro narra a história de Dentes Compridos, o último remanescente dos filhos-da-noite, autointitulados como o Povo Verdadeiro. Segundo a trama, que se inicia na América Latina pré-colombiana, surgira na Terra uma outra espécie, em alguns aspectos semelhantes a espécie humana, mas muito distinta em seus hábitos alimentares, nas suas habilidades naturais de predação, na capacidade de viver milênios, na sensibilidade a luz diurna e na grande capacidade de visão noturna. Uma espécie cuja gênese se perdera no tempo restando apenas os mitos contados pelos anciões do Povo Verdadeiro, mas cuja trajetória sobre a Terra seguiam de perto as grandes migrações humanas.

Segundo as lendas contadas por aquele povo, o Inominado, um ser responsável pela criação do Mundo Mortal e do Mundo Elevado, teria criado inicialmente a espécie humana, ou vidas-curtas assim como os filhos-da-noite os chamavam por viverem relativamente muito pouco. Os humanos formariam o Povo Predileto, que caíra em desgraça com seu criador após roubarem dele o Fogo. Em represália ao mau feito de suas criaturas, o Ser divino cria uma outra espécie, dita quase imortal, que predaria os humanos e se nutriria de seu sangue. Nasce assim o Povo Verdadeiro, mais fortes e longevos do que os humanos, de número bem menor, mas o topo da cadeia alimentar.

Contudo, após uma série de ações imprudentes, os filhos-da-noite conhecem seu fim restando apenas um representante da extirpe quase extinta. Um jovem e inexperiente que sempre em movimento, foge daqueles que sabiam como eliminá-lo e passa a viver entre os índios da América do Sul, predando de forma discreta e meticulosamente calculada, ainda que tivesse seus momentos de excesso e carnificina, o que o obrigava a migrar novamente. É assim, migrando, que Dentes Compridos chega ao território da nascente nação banta de Palmares formada por ex-escravos fugidos da colônia luso-brasileira.

Palmares, na época uma nação em formação e luta pelo seu reconhecimento como território independente, tinha como principais aliados os holandeses da Nova Holanda de Maurício de Nassau, sedeada em Recife. Junto com os holandeses o novo país negro combatia as tentativas de reconquista dos lusitanos, seus inimigos em comum.

Em Palmares, Dentes Compridos é capturado pelos irmãos Zumbi e Andalaquituche durante o reinado de Ganga-Zumba e em troca de sua vida passa a agir como agente secreto e assassino de elite dos palmarinos nas mais arriscadas missões e aventuras em prol da grande nação banta.

Localização da Palmares real. Algumas das povoações do mapa são
citadas e compõem importantes cenários da narrativa de Lodi-Ribeiro.
Aventuras do Vampiro de Palmares é um livro notável e também inteligente. Se destaca pela empresa ambiciosa de seu autor ao reescrever grande parte da história do Brasil para dar vida a uma narrativa que se inicia ainda com a aventura e ascensão dos povos pré-colombianos, destacadamente o Império Inca ainda em expansão, e segue cobrindo quase 12 séculos para encontrar seu desfecho ainda em 1888.

Dos povos pré-colombianos à Inglaterra Vitoriana de Jack, o Estripador, passando pela Guerra de Independência Norte-americana, é surpreendente como o autor costura diferentes acontecimentos da história de períodos e lugares distintos por toda América e Europa, reescrevendo a história para conectar povos e nações muito diferentes entorno de uma nação em parte imaginada, em parte verídica, um mosaico do que poderia ter sido Palmares: uma grande nação afrodescendente e livre. Infelizmente, a História real fora bem diferente da História Alternativa criada por Lodi-Ribeiro que imagina o antigo quilombo dos Palmares se tornar uma das mais destacadas potências do mundo moderno.

Neste passeio pela História Oficial e pela sua História Alterativa, Lodi-Ribeiro faz diversas referências a figuras reais que vão pouco a pouco perfazendo o conjunto dos personagens que animam a narrativa, como Túpac Yupanqui, Zumbi dos Palmares, George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.

Mas acerca dos personagens tenho outras duas coisas a mencionar. A primeira é que a História contada ganha proporções tão grandes que é como se ela fosse também um personagem, o principal deles, testemunhada pelos olhos de Dentes Compridos que é ao mesmo tempo modificado por ela e até certo ponto humanizado pelo contato prolongado com os palmarinos. A minha segunda observação é que em concordância com o nome de vidas-curtas, fica visível ao leitor mais atencioso que todos os personagens humanos possuem passagem efêmera pela história, algumas tão rápidas quanto uma estrela cadente que corta o céu em noite escura, e outros bem menos, por atravessar várias décadas ao lado de Dentes Compridos, testemunhando suas aventuras. De qualquer forma, Dentes Compridos é o único personagem que sobrevive a força do tempo da narrativa.

Neste ponto é válido destacar como fica bastante perceptível que o ponto marcante do autor é sua explosão criativa. Além de reescrever a história do mundo que conhecemos, nos primeiros capítulos, em um tom narrativo que nos faz lembrar as antigas lendas e alegorias contadas pelas civilizações milenares, o autor vai pegando um pouco da cultura sul-americana antiga, com referências da tradição cristã (não é dado um nome a Deus), das histórias bíblicas sobre a criação, até mesmo da mitologia grega (o roubo do fogo) e ainda algumas teorias científicas, a exemplo da era das glaciações e das migrações humanas pré-históricas que colonizaram o planeta e o continente americano, e, por fim, junta todas estes elementos para criar um mito novo a sua maneira.

Se tudo não bastasse é quase incrível – e aqui uso a palavra em sua denotação original, como sinônimo de inacreditável – o conhecimento de marinha e da geografia marinha de Boston demonstrada pelo autor ao narrar uma das passagens mais intensas da narrativa. Conhecimento que, sem dúvida, ele aproveitou de sua experiência como antigo oficial da Marinha do Brasil.

Contudo, se a história comporta um mix de profundos conhecimentos de História com força criativa para reescrevê-la, um problema me chamou a atenção. Se bem que não se trata de um problema, mas um fator dificultador. Lodi-Ribeiro demonstra ser um escritor muito culto de vocabulário lauto, o que é expressivo na linguagem bastante rebuscada de seu livro. Mas devido a este extenso vocabulário em alguns momentos a leitura se tornou difícil pelo grande número de palavras e expressões não tão corriqueiras, fazendo com que o glossário no final do livro e o dicionário embutido no Kindle fossem de grande valia e essenciais.

Mas de toda forma é um livro que surpreende pela proposta de reinventar não só a história como um gênero. Começo a compreender que a Editora Draco possui um séquito de autores que se destacam pela originalidade mesmo quando em gêneros por demais difundidos e algumas vezes desgastados. Autores como Kasse e Merege que se destacam pelo talento narrativo e trabalham o clássico do terror e da fantasia, respectivamente, sem deixarem de ser atuais, criativos e cativantes, e como Beraldo e Lodi-Ribeiro, que trazem propostas em campos que ainda não foram muito bem explorados pela literatura fantástica nacional, valorizando as grandes nações negras, guerreiras, inteligentes, místicas.

A edição lida é da Editora Draco, digital, do ano de 2014 e em sua edição impressa possui 300 páginas. 

Se quiser saber mais sobre Gerson Lodi-Ribeiro ou sobre os demais autores da campanha do #AnoDoBrasil clique aqui (link)

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Prévia do Google Books








[1] Médico e escritor inglês que em 1819 publicou The Vampyre, obra que estabeleceu o arquétipo moderno do vampiro (carismático e sofisticado) – atualmente poderíamos considerá-lo como um arquétipo clássico devido à diversidade atual de tipos de vampiros presentes na literatura. Sua obra também influenciou outros escritores do gênero como Bram Stoker.
[2] Escritor britânico do século XIX que em coautoria com Thomas Peckett Prest escreveu a obra folhetinesca Varney, o Vampiro (1847).
[3] Romancista, poeta e contista irlandês que escreveu o romance gótico Drácula (1897), considerada até os tempos atuais como a principal obra no desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro.

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