sexta-feira, 1 de julho de 2016

A Casa do Céu - Amanda Lindhout e Sarah Corbett - Resenha


Por Eric Silva para Edilva Bandeira e todos do grupo de leitura Ler é Viver


“O que estava acontecendo era real? Como podia ser real? Foi naquele momento que percebi alguém que passava por perto, uma mulher, flutuando como uma aparição enquanto passava por nós, em direção a um cruzamento na estrada. Estava olhando, mas não realmente olhando; tentava fingir que não nos vira, o lenço que usava ao redor da cabeça esvoaçando ao vento enquanto caminhava. Continuou a andar sem olhar para trás. Comecei a entender o que estava acontecendo; era real”
(Amanda Lindhout no momento de seu sequestro)


O mundo é vasto e cheio de culturas e de lugares exóticos e fascinantes, mas, ao mesmo tempo, em que pode ser um lugar belo e aprazível, ele também guarda em seu seio uma infinidade de mazelas e perigos. Já afirmava o próprio Einstein que o mundo é um lugar perigoso de se viver. E em um lugar como esse o que se tem é uma pseudoliberdade, porque vive-se sob a sombra e o ditame do medo e da opressão.

No entanto, obstinada, a alma humana busca sempre a liberdade, esteja ela onde for. Mesmo quando somos completamente cerceados disso que nos é tão caro e precioso, nosso espírito não deixa de anseia-la nem por um momento se quer. A Casa do Céu, sendo um livro baseado em fatos reais, nos ensina o quão preciosa é a liberdade e o quanto nossa alma agoniza sem ela. Mas mais do que isso, este livro é uma lembrança de o quanto o mundo é perigoso e injusto e o quanto o gênero humano pode ser sínico, cruel e violento. É uma lembrança de que devemos medir as consequências de nossas ações, respeitar nossos limites e nunca deixarmos de ser solidários em relação ao sofrimento do outro.

Uma frase que gosto muito e que encerra o documentário Ilha das Flores do cineasta Jorge Furtado diz assim: “Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda”. É uma frase muito bonita e que resume uma verdade fundamental: a humanidade sempre perseguiu e perseguirá a liberdade, algo que é básico à dignidade humana ainda que seja muito difícil de precisar e dar contornos. Quando terminei de ler A Casa do Céu, livro de Amanda Lindhout com coautoria de Sarah Corbett, era apenas a palavra liberdade que ecoava em minha mente. Por isso não é de estranhar que esse polissílabo, tão carregado de significações, permeie todo o trajeto desta resenha.

Resumo do enredo

Amanda cresceu em uma casa onde a violência doméstica fazia parte do cotidiano. Vivendo na pequena cidade canadense de Sylvan Lake com seus filhos pequenos, Lorinda Stewart, a mãe de Amanda, tinha brigas constantes com o namorado e que quase sempre terminavam com ela sendo a agredida por ele. Naquele ambiente conturbado Amanda tinha como único refúgio as revistas da National Geographic através das quais ela conhece um mundo de muitas cores, de povos exótico e de lugares fabulosos. Um mundo bastante diverso da sua realidade e que estava ao alcance apenas de sua imaginação.
Amanda atualmente

Ainda com 19 anos, Amanda se muda com o namorado Jaime para a cidade de Calgary onde começa a trabalhar em bares e casas noturnas servindo drinks para seus frequentadores, em geral, executivos e homens ricos que pagavam às garçonetes boas gorjetas. Com o fim do namoro e com o dinheiro daquele trabalho, Amanda vê a possibilidade de realizar seu grande sonho de conhecer o mundo. Juntando o que ganhava com as gorjetas podia custear viagens como mochileira por alguns meses em países da Ásia, da África e da América Latina. Escolher seu destino e percorrer da forma mais barata possível lugares que até então só conhecia através das páginas da National Geographic. 


Como mochileira e depois como repórter Amanda viaja para diversos cantos do mundo, conhece lugares encantadores, povos com tradições completamente diferentes, e pessoas de todo o mundo que assim como ela viajavam por várias nações apenas com uma mochila nas costas. Entre estas pessoas estava Nigel, um fotografo freelance australiano, como quem Amanda tem um caso.

Mas Amanda também conhece países assolados pela guerra e pela miséria como Sudão, Síria, Paquistão, Afeganistão e o Iraque e é em um deles, na Somália, que ela ao lado de Nigel conhecem o seu destino.

Passando por uma crise política sem precedentes, infestadas de piratas e grupos jihadistas a Somália já no ano de 2008 era considerado o país mais perigoso do mundo. Porém esse foi o destino escolhido por Amanda para escrever algumas reportagens ao lado de Nigel e é nele também que ambos são sequestrados por um grupo jihadista, torturados e mantidos como prisioneiros por 460 dias.

Resenha


A Casa do céu começa já com a descrição breve da vida de Amanda Lindhout em cativeiro, desde ali já temos uma amostra concisa do que nos espera ao longo do livro. Ao pairarmos por sobre a infância da canadense fica claro que a vida de Amanda seria marcada por percalços. Ela não sofria as agressões de Russell, o namorado da mãe, mas era testemunha silenciosa daquela violência e a instabilidade daquele lar a impulsionou a buscar libertar-se de tudo aquilo. Refugiando-se nas revistas da National ela fugia daquilo, de sua vida, libertava-se. 

É a violência que projeta em Amanda o desejo de ser livre, de percorrer o mundo em busca do sentido de estar livre. Interpreto o seu desejo de querer ir além da esfera de sua vida, conhecer novos lugares e não permitir que ninguém dê palpites ou tente detê-la como uma busca desesperada pela sensação de estar livre, de pertencer ao mundo e de tê-lo nas mãos. Querer ser senhor de si, de suas vontades e o desejo de querer ir mais e mais além – interpreto como uma tentativa de se convencer de que se é livre para fazê-lo, de que correntes e amarras não o prendem. É certo que curiosidade e desejo de aventura não faltaram para impulsionar Amanda, mas é a busca por liberdade, a fuga, que está nas entre linhas, que está subjetiva:

Meu plano era poder me mudar dali, para bem longe da minha escola, da minha rua e de garotas chamadas Erica.(...)— Por que demorou tanto, Lori? — E também: — Com quem você estava, vestida igual a uma puta desse jeito? Eu via minha mãe empalidecer ao perceber que a máscara de Russell havia caído e que, em pouco tempo — talvez hoje, talvez daqui a três semanas —, ele iria agredi-la outra vez.Eu não conseguia entender aquilo. Nunca conseguiria. Simplesmente tentava ignorar a situação. Quando as luzes estavam apagadas e todos os corpos estavam deitados, eu desaparecia, voava para longe. Minha mente saía de debaixo dos lençóis, corria pelas escadas e ia para longe, para os desertos de seda e águas marinhas espumantes da minha coleção da National Geographic, através de florestas cheias de criaturas noturnas de olhos verdes e templos encravados no alto das montanhas. (...) Tinha certeza de que o meu mundo ficava em outro lugar.
(...)Enquanto isso, eu ignorava deliberadamente os e-mails da minha mãe. Certa ou errada, eu a estava castigando por tentar me impor limites. Deixei-a cozinhando suas preocupações em banho-maria quando tomei um ônibus para uma viagem de dois dias de Lahore a Gilgit, no Vale de Hunza, no norte do Paquistão (...).

Porém, Amanda jamais ansiaria por liberdade como quando se visse confinada nas mãos dos fundamentalistas da Somália.

A Casa no Céu é um livro bastante comovente ao mesmo tempo em que é chocante. Amanda com a ajuda de sua coautoria Sarah Corbett reviraram lembranças traumáticas e escreveram com uma riqueza de detalhes impressionante cada momento de terror, abuso e desesperança vivido no cativeiro. Ao longo da leitura você divide com Amanda as sensações de impotência, de violação e desamparo que permeiam todos os capítulos que descrevem os dias de reclusão. As esperanças parcas que a moça tenta manter vivas, buscando alguma humanidade em algum de seus algozes, em um gesto ou palavra que deles viessem, mas que se desfaz um pouco a pouco a cada agressão, a cada abuso.

[Esse parágrafo talvez você ache que é spoiler] O simples fato de ser mulher a deixa em desvantagem e isso fica nítido quando observamos as diferenças de tratamento dispensados a ela e a Nigel. Em uma sociedade machista ser mulher a deixa indefesa, vulnerável, mas com o respaldo da interpretação conveniente aos sequestradores das sagradas escrituras a posição desfavorável a que Amanda é deixada é desoladora. Digo interpretação conveniente porque todo texto que é histórico deveria ser interpretado dentro do contexto de sua época e quase sempre quando isso não é feito existe uma intencionalidade ou beira-se o sectarismo. Esse era, em parte, um pensamento que em um momento a própria Amanda tenta usar com um dos líderes do grupo:

Eu entendia que os garotos na casa seguiam as instruções do Alcorão literalmente, mas imaginei que os líderes — especialmente Donald, por haver morado na Europa — teriam um pouco mais de liberdade para interpretá-lo, observando-o através das lentes dos séculos que haviam passado, assim como meus zelosos avós cristãos observavam o Novo Testamento, que tinha seus próprios trechos provocativos sobre a escravidão e o tratamento das mulheres, selecionando as boas passagens e desconsiderando as ruins. Donald não aceitou aquele tipo de argumento, definitivamente. Seu veredicto: não era reprovável.
Todo direito de agressão e exploração é dado aos captores e toda ação algoz é de alguma forma justificada e naturalizada. É este contexto que deixa o leitor ainda amais devastado e igualmente impotente na medida que aquele é um fato no qual não podemos intervir. Saber que a história é real de forma alguma nos conforta

Durante este período de cativeiro a completa falta de liberdade vai oprimindo pouco a pouco Amanda e também a Nigel, tornando as relações mais conturbadas entre eles, ainda que em vários momentos um se torne o amparo moral do outro. Considero que também foi o desejo de estar novamente livre, longe de seus sequestradores, junto as pessoas que ela amava, que a nutria. A esperança de conquistar a liberdade pode também nos manter vivos.

[Com certeza é spoiler] No final do livro Amanda fala um pouco das consequências psicológicas da experiência vivida na Somália e isso é também devastador. Quando já se foi cativo, sai-se do cativeiro, mas o cativeiro não sai completamente de você. Ficam as marcas, os traumas, as feridas abertas. A pessoa já não é a mesma nem o mundo tem as mesmas cores e significados que costumava ter. É custoso deixar de ser prisioneiro. Porém é reconfortante saber que Amanda buscou na ajuda humanitária, na própria Somália, uma forma de fechar as suas feridas e as feridas sociais de um país assolado pela miséria.
Reprodução de video em que é mostrado
Amanda e Nigel em poder de seus sequestradores

Outra coisa marcante na história é a ambivalência e contradição das ações dos captores. Desumanidade e crueldade se misturam a curiosidade e até gentileza. A maioria dos sequestradores eram adolescentes – os piões que serviam de guardas. Eram pessoas que oscilavam entre os ares frescos e sonhadores da juventude e a crueldade e a frieza que os tornavam temíveis. Em grande parte, isso era em decorrência do ambiente hostil de guerra, de um país destroçado pelos conflitos intermináveis, sem perspectivas de paz. Mas também era em decorrência da cultura em que estavam mergulhados, a cultura de exaltação exacerbada e distorcida da guerra contra “os infiéis”. Por sua vez entre os líderes era marcante o cinismo, eles sabiam do sofrimento que causavam aos prisioneiros, alguns se compadeciam, mas nada os impediam de torturá-los.

Um ponto que gostei muito nesse livro é a denúncia social que ele faz, revelando as condições críticas dos países assolados pela guerra e as condições de pobreza, abandono e vulnerabilidade social de uma grande maioria das populações de alguns países chamados na Geografia de Estados-Falidos[1]. Amanda faz uma descrição precisa e com propriedade sobre as condições políticas e sociais instáveis da Somália, bem como da vida das pessoas com quem cruzou nos fronts de guerra. Mas ao mesmo tempo o livro não se centra apenas nas mazelas sociais e descreve, com riqueza de detalhes, culturas e lugares dos países visitados por Amanda. Grandes belezas também estão presentes em a Casa do Céu, um dos livro mais geográficos que já li.

Concordo com a também blogueira, Aione Simões, quando esta afirma que Amanda demonstrou ser uma mulher “corajosa e admirável” ao ansiar conhecer lugares que ninguém desejava estar, e buscar sempre ver o lado bom e bonito destes lugares, mas que era ofuscado pela mídia internacional que via ali apenas a guerra, a pobreza e a fragilidade de seus Estados. Acrescento que ela é ainda mais admirável pelo esforço sobre-humano que faz para sobreviver ao cativeiro, para manter sua sanidade naquele ambiente hostil e por buscar não odiar seus captores. Admirável por nunca perder a esperança de reconquistar a sua liberdade.

A Casa do Céu, é um livro forte, denso, que nos revela o quanto o mundo está chagado pela violência, pelos conflitos intermináveis e numerosos, pela inópia e diferentes tipos de sectarismos. Nos ensina o valor da liberdade e da necessidade de amarmos uns aos outros, independentemente de nossas diferenças.

Por fim, só me resta agradecer imensamente a Amanda Lindhout por ter dividido com o mundo a sua experiência rememorada neste livro. Agradeço também a Edilva Bandeira e a todos do grupo de leitura Ler é Viver, do qual faço parte, e que escolheram este livro para a leitura coletiva há alguns meses. Obrigado pela leitura inesquecível que contribuirá não apenas para meu melhoramento pessoal, como também profissional docente.

A edição lida é da editora Novo Conceito em versão digital de 2013. A edição impressa contém 448 páginas.

Leia uma prévia do livro no Google Books




[1] Estado-falido é uma designação usada para nomear países que se encontram em grande vulnerabilidade não só social e econômica, como também política, apresentando uma dificuldade muito grande em manter sua soberania, apresentando inclusive dificuldades em conter revoltas internas e proteger suas fronteiras. São países extremamente pobres, marcados pela desagregação social e econômica e pela violência decorrente de guerras civis ou invasões estrangeiras. A Somália é o Estado com maior índice de falência no mundo – 114,9 em 2012.

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