sexta-feira, 13 de maio de 2016

O Andarilho das Sombras - Eduardo Kasse - Resenha

Por Eric Silva, em parceria com a Editora Draco que nos cedeu o livro.


“Eu era apenas mais um vulto nas sombras, imperceptível, silencioso e isso proporcionava um sabor a mais no teatro do medo”. 

Guerras, fé e corrupção marcaram a Europa em um período onde glória e decadência caminhavam lado a lado, como os dois fios de uma mesma espada. A “Idade das Trevas” europeia foi a era da ignorância e do medo do inferno, do domínio de nobres e da Igreja e de um dos maiores flagelos da história da humanidade: a peste negra. Contudo, era oculto nas sombras que espreitava silencioso o maior de todos os perigos, aquele que outrora foi homem e que agora imortal caminharia pela Terra, deixando para trás um rastro de perdição e morte.
Capa da edição lida

O Andarilho das Sombras, livro do escritor brasileiro Eduardo Kasse, é o primeiro da série Tempos de Sangue, e narra os primeiros passos da instigante história de Harold Stonecross, cujas “teias do destino” a muito trançadas fizeram dele um eterno e solitário viajante, um errante amaldiçoado, um vampiro.

Harold nasceu filho de um importante Earl – que seria um título de nobreza anglo-saxão – da região de Dunholm, um recanto perdido da Inglaterra medieval. Porém sendo desprezado pela família, e principalmente pelo seu pai, fugiu de casa ainda menino para viver uma aventura que não só mudaria completamente os rumos da sua vida, como o transformaria em um homem carismático e sedutor, mas igualmente marcado pelo sofrimento e pela desventura. 

Viajando pelas estradas perigosas e pelas cidades imundas da Inglaterra, o destino do menino cruzaria ainda com várias pessoas que lhe estenderiam a mão e seriam decisivas para seu crescimento como pessoa, mas que seriam igualmente passageiras em sua vida.

Caminhando sempre sem destino, primeiro sozinho e depois ao lado do amigo Edred, Harold passaria muitas dificuldades e testemunharia muitos dos males e glórias que o seu mundo possuía e lhe podia ofertar. Contudo, chegaria o momento funesto em que seu caminho como homem íntegro, valoroso, corajoso, mas, sobretudo, sensato, se encerraria, para que começasse uma nova caminhada, agora como uma criatura amaldiçoada, sedenta por sangue e destruição, igualmente errante, mas que levaria a morte e o sofrimento a todo lugar por onde passasse.

Eduardo Kasse compôs em O Andarilho das Sombras o que eu chamaria de um dos livros nacionais mais bem narrados que já li. E por que digo isso? Porque ainda não havia visto entre os livros brasileiros que já li um trabalho de pesquisa tão impecável. É certo que a princípio estranhei a forma com que o autor escreve logo no início da narrativa, usando preferencialmente períodos curtos – frases constituídas de uma ou mais orações –, mas o motivo do meu estranhamento se deve a minha própria incapacidade de optar por eles – quase sempre escrevo com períodos longos. Contudo, deixando estas questões a parte, logo que envolvido pela narrativa me esqueci dos períodos e a leitura se tornou tranquila e fluida. Foi aí que comecei a notar o conhecimento aprofundado do autor acerca da vida cotidiana na Idade Média e que ele se utiliza na composição dos cenários e personagens de sua história.
A Idade Média representada em o Andarilho das Sombras não é aquela
romantizada pelos livros de cavalaria, príncipes e reis como o rei Arthur.

Kasse conseguiu neste livro descrever o mundo medieval tal como ele era: de muito trabalho e perigos, festejo, sofrido, violento, religioso, corrupto, desigual, supersticioso, mas fascinante e tragante. A realidade da narrativa, sobretudo no comportamento de muitos dos personagens masculinos, as vezes assusta, mas acredito que foi necessário para descrever a devassidão escondida por sob a encardida manta de hipocrisias que recobria e encobria a verdade daqueles tempos. Uma licenciosidade que era recriminada numa “terra cheia de falsos pudores”, citando as palavras do próprio Harold. Distante da idade média romantizada a qual estamos acostumados encontrar em livros de príncipes, senhores feudais e cavaleiros, Kasse opta por uma idade média mais realista e próxima ao que ela foi de fato.
Eduardo Kasse busca em seu livro representar a Idade Média em seu
cotidiano, a vida das pessoas simples e a influência da
Igreja e das superstições sobre elas.

Mas além de contemplar a realidade cotidiana da época, Kasse ainda faz um resgate da mitologia nórdica e dá aos vampiros de sua narrativa não só o aspecto de seres das sombras sedentos por sangue, mas também de criaturas míticas, resultado de poderes de deuses antigos que deixaram de ser cultuados com a chegada da fé cristã.

A sensação que tive ao ler é que na narrativa, mais do que monstro, o autor transforma o vampiro em uma destas entidades antigas, um ser de um conjunto de seres fantásticos, antigos, mitológicos, a muito tempo desacreditados, como deuses a muito esquecidos. Além deste aspecto, o autor ainda consegue demonstrar como um pouco da cultura e das crenças dos povos pagãos ainda se encontravam vivas – ainda que meio adormecidas – e fundidas à cultura cristã, em um todo ambivalente e contraditório.

Outro aspecto sobre os vampiros de Kasse que quero destacar é a humanidade que estes seres ainda conservam não se diluindo completamente na fúria de sua selvageria. Harold, por exemplo, mesmo muitas vezes se demonstrando um caçador implacável e inclemente, também em muitos momentos deixa emergir vislumbres da generosidade, da cordialidade e da ternura que tinha quando em vida, como quando conversou com um menino que era caçoado por outros garotos maiores:

– Qual é o seu nome? – perguntei ao garotinho que tinha lágrimas nos olhos.
– Edgar, filho de Edgar, senhor... – respondeu com a voz magoada.
– Você é um fricote, Edgar, filho de Edgar? É um maricas? – indaguei com escárnio.
– Não senhor – respondeu o garoto fracamente.
– Você é tolo, Edgar?
– Já sei contar as moedas e preparar a lã das ovelhas tosquiadas na primavera, senhor – respondeu com um pouco de orgulho.
– Está com medo de mim, Edgar? – inquiri incisivamente.
– Por que deveria senhor? – respondeu com os olhos curiosos.
– Então, Edgar, nunca deixe que zombem de você! Seja o mais rápido, o mais forte e o mais esperto – falei em tom áspero, olhando para os outros garotos espantados – Dance e cague sobre as tripas dos seus inimigos! Ignore o medo e tenha sempre belas mulheres para aquecer a sua cama! – disse enquanto segurava o garoto no colo e dançava rodopiando com ele – Lembre-se sempre disso Edgar!
– Farei isso senhor – respondeu com uma risada marota.
– Agora vão para casa! – falei sério – Rápido.Os quatro garotos correram sem olhar para trás, escorregando nas ruas cobertas pelo barro úmido devido ao dia chuvoso.

Contudo, generoso ou não, Harold era um vampiro e em seguida, para se alimentar, mataria um dos garotos que caçoavam do pequeno Edgar.

Harold é um personagem que chama bastante a atenção. O autor teceu para sua narrativa um personagem bastante crítico e sincero que, como um espectador do mundo que lhe é contemporâneo, fala de certos aspectos da época com sarcasmo e repugnância. Harold tem horror à corrupção instalada no seio da Igreja e à ignorância dos camponeses que se deixam levar pelo medo que o clero lhes incutia. Assim, o personagem é, no livro, o maior crítico da fé professada na época. Além disso, ele não carrega consigo nem um pouco de hipocrisia e reconhece o “demônio” que existia nele mesmo.
O autor

Por fim, para concluir, não poderia deixar de mencionar as passagens de tempo existentes na narrativa.

A história de Harold não é contada de forma linear, ao contrário, vivemos dois momentos distintos na narração. Uma alternância entre o passado quando Harold ainda era humano e o momento presente. A todo instante somos levados a continuação da história do jovem Harold, como se fosse a transição entre o dia e a noite. Eu diria que o livro é dividido em dois e assim como o tempo se alterna entre períodos de luz e de escuridão nos alternamos entre o humano e o vampiro. O dia seria do Harold garoto, o jovem aventureiro e andarilho, e a noite, do vampiro sanguinário, mas ainda assim bastante humano.

O Andarilho das Sombras foi publicado pela Editora Draco. A edição é de 2012 e conta com 384 páginas. O livro seguinte da série chama-se Deuses Esquecidos e também foi publicado pela Editora Draco.

Desde já, estou ansioso para continuar a leitura da série, e assim que conseguir fazê-lo venho correndo contar minhas impressões a vocês.

Obrigado pela atenção.

Eric Silva

2 comentários:

  1. Oi Eric,
    Legal, fiquei curiosa com o livro. Não conhecia nada sobre o Eduardo Kasse. Sabe quantos livros a série vai ter? Vi que já tem 4 livros.
    Rafaela (ohmylivros.wordpress.com)

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    Respostas
    1. Olá, Rafaela, por enquanto quatro livros já foram publicados, mas segundo texto do autor publicado no Blog da Editora Draco os planos são de 5 livros e uma série de contos. Inclusive Kasse já está em processo de escrita do ultimo volume da série.

      Confira o texto:http://blog.editoradraco.com/2016/02/os-caminhos-em-tempos-de-sangue/

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