quinta-feira, 10 de março de 2016

Desventuras em Série: Mau Começo, A Sala dos Répteis e O Lago das Sanguessugas

Diz o ditado que dinheiro não traz felicidade, mas os Baudelaire afirmariam que ele só traz infortúnios, uma palavra que aqui significa “acontecimentos infelizes que se sucedem a alguém ou a um grupo de pessoas” que no caso são os próprios Baudelaire.
Os irmãos Baudelaire em ilustração de Brett Helquist.

Desventuras em Série é um conjunto de 13 livros infanto-juvenis escritos por Daniel Handler sob o pseudônimo de Lemony Snicket. Os 13 volumes – lembrem que aqui no ocidente 13 representa má sorte – narram as desventuras de três irmãos herdeiros de uma grande fortuna que ao perdem seus pais no misterioso incêndio da mansão da família são entregues a novos tutores. Contudo, ao longo de toda a narrativa os três órfãos, Violet, Klaus e Sunny, são perseguidos pelo seu primeiro tutor, o inescrupuloso e razão das desventuras dos Baudelaire, o Conde Olaf, um ator decadente que com a ajuda de sua trupe de artistas bizarros tentam a todo custo se apoderarem da fortuna dos Baudelaire.

Nesta postagem decidi falar dos três primeiros livros da coleção de forma conjunta porque estes volumes foram as referências da adaptação da obra para o cinema feita pelo estúdios Paramount Pictures, DreamWorks Pictures e Nickelodeon Movies com direção de Brad Silberling. Como eu assistir ao filme antes de ler a série minha leitura foi fortemente influenciada pela película fílmica, e as comparações foram inevitáveis. Por isso, a postagem de hoje será tripla e a resenha unificará as impressões desse conjunto com algumas comparações com o filme. Inevitavelmente haverá spoiler.


Sinopses dos livros


Mau Começo 


Como o nome já insinua, este é o primeiro volume dá série onde somos apresentados aos protagonistas da narrativa: os três irmãos, o banqueiro Sr. Poe e o antagonista Conde Olaf.
Capa da edição brasileira de Mau Começo retratando
a chegada dos órfãos a casa do Conde Olaf

O livro começa narrando como os irmãos Baudelaire receberam pelo Sr. Põe a triste notícia do trágico incêndio que vitimara seus país. A partir dali, responsável pela gestão de seus bens, o banqueiro os conduzem ao seu novo tutor, um parente distante chamado Conde Olaf que seria responsável pela guarda das crianças.

Apoiando-se mutuamente os irmão se consolam com a perda prematura dos pais e depositam suas esperanças nesse novo tutor, contudo a primeira decepção começa com a situação escabrosa da casa onde seriam obrigados a viver:

Os tijolos estavam encardidos e ensebados. Na fachada, só duas pequenas janelas, mantidas fechadas apesar de o dia estar muito bonito. Acima das janelas se erguia uma torre alta e suja, um pouco tombada para a esquerda. A porta da frente estava precisando ser repintada, e entalhada em seu centro havia a imagem de um olho. A construção inteira caía para um dos lados, como um dente torto”. 

Se já não bastasse essa primeira má impressão, o próprio conde era uma criatura de aspecto asquerosa assim como os esquisitos membros de sua trupe de artistas formada por pessoas de aspectos singulares e igualmente tenebrosas. Além disso, logo o novo tutor se demonstraria uma pessoa odiosa, perversa, astuta e ameaçadora com um único interesse: livra-se dos irmãos Baudelaire e apossar-se de sua fortuna, o que só seria possível quando Violet atingisse a maioridade legal. Em uma situação deplorável de abandono e exploração os irmãos encontrariam consolo apenas na juíza Strauss, a amigável vizinha do conde, mas que também logo seria envolvida em um ardiloso plano do conde.


A Sala dos Répteis


O segundo volume da obra conta o destino dado aos órfãos após os eventos narrados em Mau Começo. 
Capa do segundo volume da obra, A Sala dos Répteis,
edição brasileira. Na imagem vemos uma passagem da
história quando Sunny
brinca com a “Víbora Incrivelmente Mortífera".

Após seus planos derem errado, Conde Olaf se encontra foragido e os irmãos Baudelaire são levados por Sr. Poe a mansão de seu novo tutor, outro parente distante, o Dr. Montgomery, também chamado de Tio Monty.

Montgomery é um herpetologista - estudioso de répteis e anfíbios – que mantinha em sua casa uma imensa coleção de animais exóticos, a exemplo da “Víbora Incrivelmente Mortífera", que apesar do nome pomposo e sugestível se demonstrava como a mais dócil das criaturas. Tudo na casa recordava a paixão do seu dono até mesmo a decoração lembrava as perigosas serpentes estudadas por Montgomery: 

Mas, diante da casa, via-se algo verdadeiramente fora do comum: um vasto e bem-cuidado gramado, repleto de longos e finos arbustos que haviam sido podados para ficar com a aparência de cobras. Cada arbusto era um tipo diverso de serpente: umas longas, outras curtas, umas de língua para fora e outras de boca aberta revelando dentes verdes assustadores. Todas bem intimidativas, tanto que Violet, Klaus e Sunny mostraram certa hesitação em caminhar passando ao lado delas no trajeto até a casa”.
Tio Monty se demonstram uma pessoa doce e logo cativa as crianças que pensavam ter finalmente encontrado consolo naquela casa inusitada e no seu alegre proprietário que já planejava uma viagem de expedição com as crianças pelas florestas do Peru. Contudo, tudo mudaria com a chegada do misterioso e suspeito Stephano, o novo ajudante de Montgomery e que viajaria com eles na expedição.

O lago das sanguessugas 


Após os acontecimentos ocorridos no livro anterior, os irmãos Baudelaire são levados para um novo tutor, a tia Josephine, uma mulher apaixonada pelo estudo da gramática, mas com manias e temores que abeiravam o irracional.
Capa da edição brasileira de o Lago das Sanguessugas.
Nela vemos a chegada do furacão Hermano.

Josephine morava próximo ao Cais de Dâmocles em uma casa que ficava a beira de um penhasco sustentada apenas por uma frágil estrutura que lhe impedia de desabar:


“Os Baudelaire deram uma olhada. De início, os três garotos viram apenas algo semelhante a uma caixinha quadrada que tinha uma porta branca com a pintura descascando e que parecia ser um pouco maior do que o táxi que os levara até ali. Mas quando saíram do carro e se aproximaram da construção, viram que a caixinha quadrada era a única parte da casa situada no cume do morro. O resto dela — uma grande pilha de caixas quadradas grudadas umas nas outras como cubos de gelo — pendia das encostas, prendendo-se no morro por estacas metálicas que eram como patas de aranha. Ao olhar para seu novo lar, os três órfãos tiveram a impressão de que a casa inteira se agarrava ao morro como se ele fosse uma tábua de salvação”. 
Ainda que vivendo em uma casa claramente insegura, tia Josephine, após a morte do marido, Belo, devorado pelas sanguessugas carnívoras do lago Lacrimoso, havia se tornado uma mulher muito medrosa que evitava qualquer coisa que jugasse perigoso. Se recusava até mesmo a atender o telefone por medo de ser eletrocutada por ele. Devido a seu medo irracional, a vida dos órfãos não era das mais agradáveis, sendo forçados inclusive a se alimentarem de comida fria pois sua nova tutora não permitia que ninguém usasse o fogão. 

Entretanto, se não era a vida mais aprazível, os irmãos se davam por satisfeitos por estarem juntos e distantes do malvados Conde Olaf. O que os três não imaginavam era que a estranha figura do capitão Sham, às vésperas da chegada do furacão Hermano, travessaria o seu caminho e acabaria com a tranquilidade de todos.

Resenha

Os spoilers começam aqui...

A princípio Desventuras em Série se mostrou um infanto-juvenil de características bastantes peculiares. Seu aspecto gótico, as situações e os lugares absurdos, a sinceridade do autor ao afirmar que ele não estava escrevendo uma história de finais felizes. É mesclar o fantástico e o real, em uma mistura única e original.
Cartaz do filme.

O fantástico está nos lugares como o Lago Lacrimoso com suas sanguessugas carnívoras, a Casa de Josephine dependurada na beira de um penhasco e no Mau Caminho com seu cheiro insuportável de raiz-forte. O real está na consciência de que a vida não é feita apenas de momentos felizes, ou melhor, de que eles são bastante raros e é preciso união para sobreviver. Por fim o gótico permeia toda a atmosfera desse mix de real e fantástico estando nos lugares excepcionais e sombrios, assim como nas personalidades inusitadas de cada um dos personagens. A proposta da série é, por si só, muito interessante. Porém...

Por ter assistido a adaptação para o cinema senti inicialmente que os livros referentes ficaram um pouco a desejar. Primeiramente, o Conde Olaf não tem um senso de humor que supere a criatividade do incrível Jim Carrey, na verdade o ator deu mais alma ao personagem. Em segundo lugar, os momentos de ação e de suspense da narrativa não conseguiram superar a releitura da película e nem a dramaticidade que o filme consegue subsumir (introduzir) na história. Pelo contrário, estes aspectos são um pouco fracos nesses três primeiros livros e talvez por isso o filme tenha introduzido elementos e cenas inexistentes na narrativa dos três primeiros livros, suprimindo e alterado a ordem de alguns acontecimentos.

Ainda assim, o conceito trazido pelo livro é fantástico, um livro gótico para crianças é simplesmente algo que eu jamais imaginaria. Já li infanto-juvenis dramáticos, como Tonico de José Rezende Filho, contudo nada como Desventuras. Sua perspectiva de que não haverá final feliz, de um mundo fantástico situado entre o irreal, o inusitado e um passado de datação incerta é bastante original. Por isso vou destacar alguns aspectos em que o livro ganha de sua adaptação para o cinema.

A primeira delas é que no livro os três irmão parecem mais humanos do que no filme e isso foi um alívio. Os três são realmente inteligentes, sarcásticos e criativos, mas Klaus não é aquela biblioteca ambulante que tem respostas prontas para tudo apenas puxando um ou dois livro de sua mente e que ele tenha lido. No livro ele lê e pesquisa para achar respostas e mesmo sendo sagaz leva um tempo para concluir uma saída para os problemas que aparecem. Violet também é bastante criativa e, sim, ela usa a fita para prender o cabelo, mas a sua genialidade ainda se situa entre a capacidade dos mortais. Por fim, Sunny não é nenhum monstrinho que abre uma lata com os dentes... se bem que ela rompe uma corda com os dentes e abre a perna de pau do capitão Sham com uma mordida... o.O

Em segundo lugar, os livros trabalham mais profundamente o convívio dos órfãos com os personagens coadjuvantes, a exemplo de Sr. Poe, Tio Monty, Tia Josephine e, principalmente, a gentil Juíza Strauss com quem as crianças constrói uma amizade significativa tornando a sua casa em um pequeno e breve refúgio para o sofrimento delas. Desta forma os livros são mais profundos em sua narrativa. Ainda assim o filme consegue preservar as principais características destes personagens

Para concluir destaco aqui três importantes pontos do filme inexistentes no livro ou que foram profundamente modificados:

A cena da destruição da casa de Josephine


Na versão do cinema Violet e Klaus são forçados a pensar um plano de fuga engenhoso para não desabarem do penhasco juntamente com a casa, porém quase toda aquela cena não existe na versão original do livro, há sim uma saída às pressas da casa que desabava, mas só. O plano de Violet com a âncora simplesmente não existe no livro.

Alteração na ordem dos acontecimentos


Com certeza para que o final do filme fosse mais dramático, a ordem cronológica dos fatos nos três livros foram alteradas e uma cena foi criada para dar coesão a narrativa.

No filme, o casamento entre Violet e Conde Olaf, ocorrido durante uma peça de teatro tramada pelo vilão apenas para que a juíza Strauss realizasse um casamento legal entre ele e a mais velha dos irmãos Baudelaire, é usado como desfecho na película, contudo, originalmente este seria o desfecho do primeiro livro, Mau Começo, e não do terceiro livro como faz supor a película fílmica. 

Para fazer com que essa alteração não prejudicasse a ordem lógica dos fatos foi criada uma cena extra como desfecho substituto do primeiro livro. A cena é aquela em que Olaf tenta se livra dos órfãos deixando-os trancados em seu carro na linha férrea enquanto o trem vinha na direção deles. O plano do vilão dá errado devido a inteligência dos irmãos, mas Sr. Poe chega na hora, interpreta a situação de maneira equivocada – só pra variar –, acusa Olaf de irresponsável e tira as crianças dele. Com esse acréscimo o Conde Olaf perde a guarda das crianças e elas são encaminhadas a Tio Monty e a transição de um livro para outro é feito sem prejuízo da ordem lógica dos acontecimentos.

O misterioso grupo da luneta e as investigações sobre incêndios

No filme, em quatro momentos diferentes Klaus encontra evidências da existência de um grupo secreto do qual seus pais, Tio Monty, Tia Josephine e Belo – o falecido marido de Josephine – teriam feito parte no passado.

O símbolo marcante do grupo seria a luneta e cada membro carregaria consigo uma. Outro elemento do mistério são os incêndios: os país dos Baudelaire haviam morrido em um incêndio na mansão onde moravam com os filhos, Monty teria perdido sua família da mesma forma e Belo durante anos havia investigado uma série de incêndios. Contudo nada disso aparece nos livros. Fiquei intrigado, seria mais uma invenção da adaptação para dar mais ânimo ao telespectador? Investiguei e parece que realmente existe um grupo misterioso na história, chamado de V.F.D. (Volunteer Fire Department, algo como Corpo de Bombeiros Voluntários), mas a primeira menção sobre o grupo só aparece em Inferno no Colégio Interno, quinto livro da série, mas não sei os detalhes porque ainda não li os livros seguintes. Fica no suspense.

As edições lidas foram da Editora Cia das Letras, edição de 2001

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